Gestação Solidária

Destaque nos principais portais de notícia da última semana, o casal Paulo e Rômulo revelou os desafios enfrentados para realização do sonho da paternidade com a colaboração de uma amiga que, solidariamente, se disponibilizou para gestar. No mês do Orgulho LGBTQIA+, Maria Clara Magalhães faz breves digressões sobre o tema à luz da legislação brasileira.

A barriga solidária no Brasil, também chamada de útero de substituição, é um tratamento disponibilizado pela Medicina Reprodutiva que consiste na geração de um bebê com material genético (óvulo) de uma mulher, mas gestado no útero de outra pessoa.

Sendo assim, a gestação de substituição representa uma possibilidade não apenas para mulheres com problemas de saúde que impeçam ou contraindiquem a gravidez, mas também para pessoas solteiras ou em uniões homoafetivas.

No que concerne a casais homossexuais ou produções independentes, em razão da impossibilidade do fornecimento de ambos os materiais genéticos, é necessário recorrer a um banco gametas e, com o apoio de uma barriga solidária, o embrião é transferido ao útero da mulher que vai gestar o bebê para os pais biológicos.

Trata-se de um tratamento permitido por lei e devidamente regulado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). As normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida encontram-se descritas na Resolução CFM nº 2.168/2017, recentemente atualizada pela Resolução CFM nº: 2.320/22, existindo expressa previsão sobre a utilização de barriga solidária, no “Capítulo VII – Sobre a Gestação de Substituição” da referida resolução.

Há alguns requisitos a serem preenchidos para conferir aptidão para realização da técnica, entre os quais destaca-se

  1. A cedente temporária do útero deve pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, sendo permitida a realização por parentes mais distantes ou sem relação consanguínea, desde que haja autorização do Conselho Regional de Medicina. Em qualquer das hipóteses, a cessão temporária do útero não pode ter caráter lucrativo ou comercial.
  2. Todo o processo deverá ser devidamente documentado, devendo as clínicas de reprodução assistida inserirem no prontuário da paciente as diversas informações exigidas pela norma, a exemplo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado pelos pacientes e pela cedente temporária do útero.

O exemplo vivenciado pelo casal Paulo e Rômulo é um grande mote para reflexão sobre a necessidade de atualização constante do Direito das Famílias, o qual, para ser efetivo, deve acompanhar as necessidades e nuances da sociedade contemporânea.

A família brasileira passou por processos de modificação em sua estrutura. A Constituição Federal de 1988 foi o marco inicial para o reconhecimento de novos modelos familiares e atualização da visão de família, que passou a ser pautada principalmente pelo afeto. Neste jaez, permitiu o reconhecimento das diversas modalidades de família e, por consequente, assegurou a estas novas estruturas familiares os mesmos direitos e deveres de qualquer outro modelo familiar. Conferir a através de um permissivo legal, a possibilidade de dispor da generosidade e de um ato de amor, capaz de transformar vidas em situações excepcionais, se mostra mais um importante instrumento para o reconhecimento das estruturas familiares coadunado com a realidade e proteção de direitos.

TST valida uso de provas digitais de geolocalização para verificação de alegação de jornada extraordinária

Na última semana, a Subseção II Especializadas em Dissídios Individuais (SDI-II) proferiu decisão no sentido de deferir, por maioria, a utilização de prova digital de geolocalização no processo do trabalho em ações que versem sobre a realização (ou não) de jornada extraordinária.

A temática tem sido bastante discutida nos últimos anos por ser alvo de controvérsia em relação a sua violação (ou ausência dela) de princípios constitucionais ligados, principalmente, à privacidade e intimidade do empregado.

Contudo, é de se destacar que a partir da informatização do processo judicial, desde a implementação do PJE, bem como da sua brusca intensificação advinda da pandemia da COVID-19, a realidade processual no âmbito nacional vem sendo modificada, fazendo com que se torne ilógico que, com tantas mudanças, as relações trabalhistas e suas relativas regras estejam limitadas à interpretação dada pelo entendimento de legisladores contemporâneos da década de 40 de 80.

É incontestável a necessidade de que os preceitos Constitucionais e Trabalhistas grafados no século passado estejam alinhados à realidade contemporânea, na qual a utilização de mecanismo tecnológicos jamais se tornou algo intrínseco à realidade laboral da maior parte da população nacional. Assim, segundo o colegiado, a prova é adequada, necessária e proporcional e não viola o sigilo telemático e de comunicações garantido na Constituição Federal, sendo consubstancial a sua utilização em demandas que versem sobre a realização de jornada extraordinária.

A ação trabalhista que seu ensejo à brilhante decisão foi ajuizada em 2019 por um bancário que laborou na Banco Santander por 33 anos e pedia o pagamento de horas extras. Em sua defesa, o banco afirmou que empregado ocupava cargo de gerência e, portanto, não estava sujeito ao controle de jornada, sendo a prova digital de geolocalização imprescindível para demonstrar se de fato estava ao menos nas dependências da empresa.

A necessidade de sua utilização traz um arcabouço probatório mais robusto ao processo, visto que, conforme bem pontuado pelo Ministro Douglas Alencar Rodrigues, “a prova testemunhal sempre foi onerosa e permeável a mentiras e falsidade e a tecnologia auxilia a resolver conflitos e atingir a verdade”.

Ainda em primeiro grau, o juiz determinou que ele informasse o número de seu telefone e a identificação do aparelho (IMEI) para oficiar as operadoras de telefonia e, caso não o fizesse, seria aplicada a pena de confissão. O Tribunal Regional, por sua vez, cassou a decisão, mas, por maioria, o TST decidiu pela validade da utilização dos dados de geolocalização obtidos.

Em decisão, o Ministro reforçou a necessidade de “desenvolver sistemas e treinar magistrados no uso de tecnologias essenciais para a edificação de uma sociedade que cumpra a promessa constitucional de ser mais justa, para depois censurar a produção dessas mesmas provas, seria uma enorme incoerência”

O objetivo da utilização dessa prova no processo do trabalho apenas traz benefícios para demandas que tendem a ser exaustiva, ante a necessidade de, muitas vezes, ouvir-se as partes e testemunhas que trazem depoimentos conflitantes, recheados de pessoalidade e que, diante disso, apenas distanciam as decisões do objetivo real de um processo: a busca pela verdade real do fato.


Por: Pedro Rodrigues

TCU entende que o agente de contratação possui autonomia para desconsiderar lances inexequíveis durante disputa de preços em licitações

No último dia 15/05/2024, o Plenário do Tribunal de Contas da União proferiu o acórdão nº 948/2024 reconhecendo que em caso de identificação, de apresentação de lance manifestamente inexequível capaz de comprometer, restringir ou frustrar a competitividade do certame licitatório, pode o agente de contratação realizar, durante a disputa, a exclusão da oferta, a fim de manter a verdadeira disputa e na busca da proposta mais vantajosa para a Administração Pública.

O Acórdão possui como principal fundamento o artigo 21, §4º, da Instrução Normativa Seges/ME 73/2022, que dispõe:

Art. 21.  Iniciada a fase competitiva, observado o modo de disputa adotado no edital, nos termos do disposto no art. 22, os licitantes poderão encaminhar lances exclusivamente por meio do sistema eletrônico.

(…)

§ 4º O agente de contratação ou a comissão de contratação, quando o substituir, poderá, durante a disputa, como medida excepcional, excluir a proposta ou o lance que possa comprometer, restringir ou frustrar o caráter competitivo do processo licitatório, mediante comunicação eletrônica automática via sistema.

(Grifos acrescidos)

Por um lado, o reconhecimento é um excelente precedente para as empresas que precisam enfrentar a simulada concorrência de licitantes em sessões que possuem como finalidade tão somente “mergulhar” o preço da disputa e prejudicar a verdadeira concorrência. Todavia, analisando-se por outra ótica, deve-se ter cautela nesse poder conferido ao agente de contratação, pois em certas ocasiões pode existir margem para desconsiderações de ofertas que, apesar de serem à primeira vista inexequíveis, na prática, são plenamente exequíveis, como acontece em licitações que envolvem o uso de tecnologias na prestação do serviço.

Portanto, é importante estar atento a esta segunda hipótese, devendo o licitante estar sempre ciente da redação do artigo 59, §2º, da Lei 14.133/2021[1], que impõe a condição de o administrador público realizar diligências para aferir a exequibilidade da proposta, o que induz que a discricionariedade conferida pelo TCU somente ocorra em casos de relevante percepção, sob pena de prejudicar o acesso à melhor proposta por parte do ente público contratante.


[1] Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que:

(…)

§ 2º A Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo

STJ decide: Atraso em atendimento bancário não gera dano moral presumido

No último dia 24/04/2024, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de julgamento de recursos repetitivos, decidiu que o dano moral em caso de simples atraso no atendimento de serviços bancários não pode ser presumido.

A controvérsia advém de um questionamento feito pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, através do qual foi suscitada a dúvida quanto a incidência de dano moral presumido quando da ocorrência de atraso/espera excessiva no atendimento bancário.

Em sede de julgamento, a corte especial fixou entendimento de que, para a configuração de dano in re ipsa, ou seja, presumido, seria necessária a constatação de abuso de direito na prestação de serviços bancários, devendo ser feita com base nas circunstâncias concretas do caso, não bastando a mera alegação de descumprimento de prazos previstos em legislações municipais.

O TJGO, que suscitou a controvérsia, baseou sua decisão no argumento de que haveria “perda de tempo útil do consumidor”, o que, justificaria a presunção de dano moral.

Por sua vez, o STJ divergiu do entendimento vergastado, afirmando que a mera invocação de legislação municipal que estabelece tempo máximo de espera em fila de banco não é suficiente para ensejar o direito à indenização; o qual apenas se verificará se a espera por atendimento na fila de banco for excessiva ou associada a outros constrangimentos.

Segundo o ministro Ricardo Villas Bôas, ainda que as leis municipais estabeleçam tempos máximos de espera em filas de banco, o desrespeito a esses prazos configura, em geral, uma infração administrativa sujeita a multas e outras penalidades, não sendo possível a presunção da ocorrência de dano moral respaldada apenas no descumprimento de tais prazos.

Para a configuração da responsabilidade civil é necessário que sejam verificadas a presença do nexo causal e do dano efetivo, e, nesse caso, a perpetuação do entendimento de dano presumido pela simples espera em atendimento bancário importaria expressa afronta à legislação pátria.

Ademais, a defesa do entendimento de que em tal hipótese há presunção automática da ocorrência do abalo moral, alavancaria a judicialização excessiva por parte dos consumidores, bem como fomentaria uma indústria de enriquecimento fundada em situações corriqueiras do dia a dia. Diante disso, na prática, tendo em vista o tema ter sido submetido ao regramento dos repetitivos, os recursos que versem sobre a tese firmada, declarados prejudicados ao tempo da admissão do incidente, deverão ser julgados em conformidade com a tese firmada, de modo que a procedência do pleito indenizatório demandará a comprovação da efetiva ocorrência do dano moral alegado.

Justiça Federal da 1ª Região determina a suspensão de resolução do Conselho Federal de Enfermagem que autorizava a atuação de enfermeiros em cirurgias plástica, vascular e dermatológica

Em atendimento a pedido judicial da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), a Justiça Federal da 1ª região suspendeu resolução nº 529/2016 do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) que autorizava a atuação de enfermeiros em cirurgias plástica, vascular e dermatológicas.
Ao julgar o processo nº 0020776-45.2017.4.01.3400, o magistrado entendeu que a resolução elaborada pelo COFEN viola a Lei 12.842/2013, considerando que a referida resolução busca regulamentar a realização de procedimento estéticos invasivos, e o artigo 4º, inciso III da referida lei, deixa claro que os referidos atos são privativos de profissionais médicos, nos seguintes termos:
Art. 4º São atividades privativas do médico:
III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;

Convém ainda mencionar que a Lei nº 7.498/1986, em seu artigo 11 estabelece todas as atividades que podem ser desempenhadas por profissionais da enfermagem, em cujo rol inexiste menção de autorização para realização de procedimentos estéticos invasivos.
Nesse sentido, no entender da SBD, ratificado pela sentença em comento, a resolução proferida pelo COFEN, além de ser norma imprópria para regulação dos efeitos das leis federais de nº 7.498/1986 e 12.842/2013, vai de encontro ao que tais leis preconizam, sendo certo que a eventual ampliação dos procedimentos passíveis de realização por enfermeiros só pode ocorrer através do adequado procedimento legislativo, precedido do necessário debate com a sociedade brasileira e, sobretudo, com as classes profissionais envolvidas.
Ressalta-se que a decisão em questão ainda não é definitiva, uma vez que se encontra pendente de julgamento o recurso de apelação interposto pelo COFEN.
Contudo, trata-se de importante discussão que deverá ser acompanhada pelos profissionais de saúde a fim de se adequarem ao que for definido após os desdobramentos da ação.
Importante salientar, por fim, que atualmente vigora a suspensão da resolução 529/2016 do COFEN, conforme expressamente determinado pela já citada decisão judicial proferida pela Justiça Federal da 1ª região.

Auxílio por Incapacidade: ação judicial não suspende o contrato de trabalho

A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), no julgamento do Recurso de Revista 1000460-75.2021.5.02.0511, manteve a reintegração e a condenação de uma empresa ao pagamento dos salários do período entre a alta previdenciária e o retorno ao serviço de uma auxiliar de serviços gerais, sob a alegação de que “cabia ao empregador acompanhar o período em que a auxiliar recebera o benefício e a ciência inequívoca de sua cessação para que ela pudesse retornar ao trabalho, ainda que readaptada para desenvolver tarefas compatíveis com sua condição de saúde.”.

Em sua defesa, a empresa alegou que o contrato estava suspenso por causa do ingresso de ação na Justiça Federal pela empregada, ainda não julgada, para restabelecer o benefício previdenciário. O juiz de primeiro grau, da Vara do Trabalho de Itapevi, entendeu que “a ação movida na Justiça Federal não suspende o contrato que devia ser retomado a partir da alta médica.”.

O TST mantém forte jurisprudência de que a empresa é responsável pelo pagamento dos salários durante o limbo previdenciário, que se configura quando o trabalhador recebe alta médica do INSS com a cessação do auxílio por incapacidade e a empresa obsta o retorno desse colaborador ao serviço, muitas vezes pelo resultado do ASO inapto. Ou seja, independentemente de haver ou não aptidão para o trabalho, após a alta do INSS, cessa a suspensão do contrato e a empresa volta a ser responsável pelos salários, cabendo-lhe demonstrar que foi o empregado quem se recusou a retornar às atividades ou abandonou o emprego diante das convocações feitas pela empresa.

O acompanhamento dos afastamentos por incapacidade é fundamental entre as áreas de Recursos Humanos, Saúde Ocupacional e Segurança do Trabalho e do corpo Jurídico sob a finalidade de evitar um passivo trabalhista oriundo do limbo previdenciário. Requerer a prorrogação do benefício nos 15 dias anteriores à cessação e readaptar o empregado de função de acordo com suas limitações, realizando uma Gestão de Afastados, são algumas soluções para evitar o limbo.

Importante ter em mente que recurso administrativo perante INSS ou ação previdenciária na Justiça Federal para concessão ou restabelecimento de auxílio por incapacidade não suspendem o contrato de trabalho. É preciso acompanhar eventual deferimento e cessação dos benefícios previdenciários.

Estelionato Emocional e a possibilidade de reparação civil

Em recente julgado no Distrito Federal, a 2ª Turma Cível do TJDFT, pelo Acórdão de número 1364563, trouxe a seguinte definição acerca do tema: “O estelionato sentimental ocorre no caso em que uma das partes da relação abusa da confiança e da afeição do parceiro amoroso com o propósito de obter vantagens patrimoniais”.

Desta feita, a conduta do estelionato sentimental traduz-se quando um dos indivíduos envolvido no relacionamento, se utiliza da confiança e do ‘falso’ vínculo afetivo que permeia a relação, para, em verdade, abusar do imaginário da vítima, para aplicar golpes.

O estelionatário se utiliza da relação de confiança criada para obter vantagem patrimonial da vítima, violando a boa-fé objetiva. A vítima, por acreditar no afeto e no relacionamento construído, cede às investidas e entrega ao estelionatário valores em troca de uma futura promessa ou de um compromisso mais sério, como o casamento.

Defendendo esse entendimento, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG julgou pela modificação da sentença proferida pela 6ª Vara Cível da Comarca de Juiz de Fora para reconhecer a ocorrência do estelionato sentimental e fixar indenização por danos morais no valor de R$ 3.000,00, além de R$ 2.520,00 por danos materiais.

No caso, a parceira alegou que, na constância do relacionamento, o parceiro havia retirado dinheiro de sua carteira, subtraído um cartão de crédito e realizado seis saques bancários, totalizando R$ 3.520,00, sendo devolvido apenas R$ 1.000,00.

A relatora destacou que o estelionato sentimental se concretiza quando uma das partes pretende obter, para si ou outrem, vantagem ilícita em prejuízo alheio, incentivando ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, ressaltando a Desembargadora: “Nessa ordem de ideias, o parceiro, aproveitando-se da confiança amorosa entre o casal, valeu-se de meios ilícitos para obter vantagem pecuniária, o que é causa suficiente para configurar o dano moral”.

Relevante ressaltar que, para além dos reflexos civis, tal modalidade criminosa pode ser enquadrada no artigo 171 do Código Penal, tratando-se de uma nova espécie de estelionato, eis que o agente “se utiliza de meio ardil para obter vantagem econômica ilícita da companheira, aproveitando-se da relação afetuosa, configurando o delito de estelionato.” (Acórdão 1141866 da 1a Turma Criminal).

Prazo para formular pedido principal após deferimento da tutela de urgência é contado em dias úteis, decide STJ

No julgamento do EREsp 2066868, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o  prazo de 30 dias para apresentar o pedido principal após a concessão da tutela cautelar antecedente, de acordo com o artigo 308 do Código de Processo Civil (CPC), é de natureza processual e, consequentemente, deve ser contado em dias úteis, conforme estabelecido pelo artigo 219 do CPC.

A decisão, de suma importância, uniformizou o entendimento das Turmas do Superior Tribunal de Justiça, haja vista que para a Terceira Turma o prazo teria natureza processual e, por isso, deveria ser contado em dias úteis e, para a Primeira Turma, o prazo, de natureza decadencial, deveria ser contado em dias corridos.

No caso concreto, o processo se iniciou com um pedido de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, por meio da qual buscou-se a sustação dos protestos de títulos realizados em nome da parte Autora.

O juízo de primeiro grau deferiu o pedido de concessão de tutela provisória cautelar e determinou a apresentação do pedido principal no prazo de 30 (trinta) dias, nos termos do art. 308 do CPC.

A parte não apresentou o pleito principal em 30 dias corridos e, por conseguinte,  a Ré requereu o  reconhecimento da decadência , o que não foi acolhido pelo juízo de primeiro grau, com fundamento no entendimento de tratar-se de prazo de  natureza processual.

Irresignada, a parte Ré apresentou agravo de instrumento contra a referida decisão e teve suas alegações acolhidas. A Autora, por sua vez, apresentou embargos de declaração e, após rejeitados, interpôs Recurso Especial.

O propósito recursal consistiu em definir se houve negativa de prestação jurisdicional e qual a natureza do prazo previsto no art. 308 do CPC – processual ou decadencial, para a formulação do pedido principal no procedimento da tutela cautelar requerida em caráter antecedente.

Seguindo o entendimento da parte Autora, ora recorrente, a Terceira Turma do STJ entendeu que o lapso temporal previsto no artigo 308 do CPC têm natureza processual, devendo ser contado em dias úteis, consoante o previsto no artigo 219 do CPC.

Por fim, a parte recorrida, insatisfeita com a decisão, apresentou embargos de divergência, oportunidade em que sustentou que o acórdão embargado, ao decidir que o prazo de 30 (trinta) dias para a apresentação do pedido principal teria natureza processual, divergiu do acórdão paradigma prolatado pela Primeira Turma do mesmo tribunal (AgInt no REsp 1.982.986/MG, Relator Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 22/6/2022), que entendeu se tratar de prazo de natureza material (decadência), contado em dias corridos.

Ao analisar o  recurso, o Ministro Relator Sebastião Reis Junior proferiu o seguinte entendimento “Resta claro que o prazo de 30 dias previsto no artigo 308 do CPC é para a prática de ato no mesmo processo. A consequência para a não formulação do pedido principal no prazo de 30 dias é a perda da eficácia da medida concedida (artigo 309, inciso II, do CPC/2015), sem afetar o direito material”, completou.

No entendimento do Relator, a inovação legislativa, com a alteração profunda do sistema da tutela cautelar antecedente, deixa claro que o prazo do artigo 308 do CPC é de natureza processual, concluindo com a seguinte frase “Como desdobramento lógico, sua contagem deverá ser realizada apenas considerando os dias úteis“. Desta forma, não restam dúvidas que o prazo processual para formular o pleito principal, após deferimento da tutela, deverá ser contado em dias úteis, encerrando-se as discussões no âmbito das Turmas do Superior Tribunal de Justiça.

Do incentivo à participação de consórcios em licitações pela Lei 14.133/2021

No âmbito de Licitações, quando da vigência da Lei 8.666/93, a possibilidade de participação de consórcios nos certames precisava estar expressamente prevista em edital, consoante se percebe através da redação do artigo 33 da referida legislação:

Art. 33.  Quando permitida na licitação a participação de empresas em consórcio, observar-se-ão as seguintes normas:

(Grifos acrescidos)

O trecho “quando permitida” representa a exceção à regra, ou seja, somente seria possível a participação de consórcios mediante ato devidamente motivado do administrador público. Inclusive, os precedentes da jurisprudência afirmam que quando o certame, ainda regido pela antiga lei, apresenta objeto de baixa complexidade, a motivação para a não participação de consórcios é presumida, sem a necessidade de justificativa formal do órgão licitante.

Por outro lado, com a entrada em vigor da Lei 14.133/2021, a realidade muda de cenário, pois a regra passa a ser da possibilidade de participação em consórcio de empresas, devendo, a vedação ser devidamente justificada, consoante previsão constante no artigo 15 da mencionada legislação:

Art. 15. Salvo vedação devidamente justificada no processo licitatório, pessoa jurídica poderá participar de licitação em consórcio, observadas as seguintes normas:

(Grifos acrescidos)

Dessa forma, mesmo com a mudança, é válido alertar para a importância de a Administração atentar acerca da complexidade do objeto a ser licitado, se realmente se faz necessário a participação de empresas em consórcio. Afinal, abre-se margem para que concorrentes se unam mesmo quando poderiam prestar o serviço cada um de forma independente, prejudicando a concorrência. Igualmente, licitantes que desejem participar individualmente de determinado certame com baixa complexidade, devem ficar atentos e, se for o caso, impugnar o Instrumento Convocatório, tornando obrigatório que a Administração Pública, por meio de ato administrativo devidamente motivado, justifique a manutenção da possibilidade de participação em consórcio por empresas interessadas no certame – decisão essa que é de discricionariedade da administrador público, conforme entendimento pacificado do TCU e demais tribunais de justiça pátrios.

O Controle Jurisdicional dos Atos Administrativos Discricionários: Limites e Princípios Fundamentais observados no julgamento do AREsp 1.806.617/DF pelo STJ

O ato administrativo emanado pelo Estado através de seus representantes, tem como imediata finalidade criar, reconhecer, modificar, resguardar ou extinguir direitos dos seus administrados. Como exemplos práticos de atos administrativos produzidos pelo Estado temos a demissão de funcionários públicos, a inabilitação de candidato em concurso público, a concessão de alvará de construção ou até mesmo a cobrança de multas.

Diante desse contexto, ao examinar os tipos de atos praticados pela Administração Pública, observa-se a distinção entre dois tipos de atos: os atos vinculados e os atos discricionários, cada um com efeitos jurídicos específicos. Enquanto no ato vinculado não há margem de liberdade na tomada de decisões ou ações em situações concretas, uma vez que a lei estabelece os requisitos do ato, afastando a liberdade de análise do agente público, no ato discricionário, a escolha é feita com base nos critérios de conveniência e oportunidade do Administrador, visando selecionar a melhor alternativa em prol do interesse público, seguindo um critério de mérito. 

Todavia, em que pese a Constituição Federal de 1988 estabeleça que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e autônomos para produzirem seus atos, admite-se interferência recíproca via controle externo, a fim de reprimir violações a princípios e abusos de poder.

Nesse cenário, é pertinente discorrer sobre a interpretação desenvolvida pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a partir da análise do Agravo em Recurso Especial nº 1.806.617/DF. Segundo consta, o caso em questão envolveu a Administração Pública do Distrito Federal, que organizou um concurso público para o preenchimento de cargos de soldados. Entretanto, em determinado momento, um candidato, após ser aprovado nas fases iniciais, foi desclassificado na etapa de investigação social durante o Curso de Formação da Polícia.

Neste específico, o ato administrativo que impediu a participação do candidato na fase subsequente do certame ocorreu devido à menção, na ficha cadastral do candidato, do uso de drogas em 2011, quando o candidato tinha 19 anos de idade e estava envolvido em um processo criminal, que foi arquivado em 2012 devido à extinção da punibilidade. Logo, trata-se de um ato administrativo claramente descompassado da legalidade, uma vez que foi produzido sem observar a impessoalidade e o interesse público.

Diante desse contexto, ao analisar o caso, o STJ destacou que a discricionariedade administrativa não é imune ao controle judicial, especialmente diante da prática de atos que impliquem restrições a direitos dos administrados, como a eliminação de concurso público, cabendo à Justiça reapreciar os aspectos vinculados do ato administrativo, seja a sua competência, finalidade ou forma, bem como a razoabilidade e proporcionalidade.

Inclusive, ao determinar a reintegração do candidato ao concurso, o colegiado considerou, entre outras razões, o fato de o candidato já estar exercendo um cargo no serviço público, o longo período decorrido desde seu contato com entorpecentes e sua aprovação na investigação social em outro concurso para a carreira policial no Estado do Maranhão.

Ainda, na avaliação do relator, o ministro Og Fernandes, impedir o candidato de prosseguir no certame, além de revelar uma postura contraditória da administração – que reputa como inidôneo um candidato que já é integrante dos seus quadros – acaba por aplicar uma sanção de caráter perpétuo, cristalinamente ilegal no Ordenamento Jurídico Brasileiro, conforme previsão legal no art. 5º, inciso XLVII, b, da Constituição Federal de 1988, dado o grande lastro temporal entre o fato tido como desabonador e o momento da investigação social.

Assim, resta consignado, portanto, que o controle judicial dos atos administrativos, nas situações de flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada, é uma ferramenta essencial para a manutenção do Estado Democrático de Direito, proporcionando ao administrado a oportunidade de buscar a revisão do mérito administrativo quando o exercício da competência discricionária viola princípios constitucionais.


Por: João Leite