Pequenas impressões sobre a Nova Reforma na Lei de Recuperação Judicial e Falência

Quem atua com Recuperação Judicial e Falências vem acompanhando a tramitação, em regime de urgência, do Projeto de Lei nº 03/2024, que propõe alterações na Lei nº 11.101/2005 (LRF), recentemente modificada.

O PL quer ampliar a participação dos credores nos processos de Recuperação Judicial e Falências, visando elevar a taxa de recuperação de créditos e mitigar os riscos aos envolvidos. O texto está em análise na Câmara dos Deputados e sequer foi acompanhado de uma minuciosa exposição dos seus motivos, a justificar além da sua tramitação em regime de urgência, a pertinência da reforma e das escolhas feitas no projeto.

Caso aprovado, o novo PL pode trazer profundas modificações no funcionamento do procedimento falimentar e, em especial, na dinâmica entre os credores e na tutela do crédito.

Segundo o Governo Federal, autor do PL, a proposta deverá conferir celeridade à tomada de decisões nos processos de Falência, facilitando o acesso às informações empresariais e modernizando a governança, transformando a Falência em um processo de liquidação negociada dos ativos do devedor, aproveitando-se “da experiência do processo de Recuperação Judicial atualmente em vigor.”

Dentre outros pontos, o PL modifica a assembleia geral de credores, permitindo a nomeação de um gestor no processo de liquidação de ativos e de pagamento aos interessados, em substituição à figura do Administrador Judicial da Falência.

Em relação à transparência das informações, o texto do PL prevê a divulgação, pela internet, de um plano com as principais etapas do processo de Falência. Entre outros pontos, esse documento deverá informar sobre:

  • a gestão dos recursos financeiros da massa falida;
  • a venda dos ativos;
  • as providências em relação aos processos judiciais ou administrativos em andamento;
  • o pagamento dos passivos; e,
  • a eventual contratação de profissionais, empresas especializadas ou avaliadores.

Interessante perceber que a solução apresentada pelo PL para aprimorar o processo falimentar, permitindo que os maiores credores escolham o gestor da massa falida, e definam os rumos do processo, assemelha-se à solução já existente na antiga Lei de Falências (o DL n° 7.661/45), que não teve qualquer sucesso. Estaríamos diante de um retrocesso legislativo?

De toda forma, a Lei n° 14.112, de 24/12/2020, que reformou a Lei de Recuperação Judicial e de Falências (LRF), promoveu inúmeras e profundas inovações ao procedimento falimentar, munindo-o com institutos que visam a torná-lo mais célere. Porém, muitas delas ainda não tiveram tempo suficiente para serem percebidas e medidas pela comunidade jurídica, a fim de verificar o seu impacto, benéfico ou não, ao processo falimentar, como por exemplo, o prazo do fresh start instituído pela reformade 03 (três) anos (artigo 158, V, da LRF), que somente poderá começar a ser aferido após o ano de 2024.

Ou seja, os estudos existentes que apontam a demora na tramitação da Falência são anteriores ao ano de 2020, inexistindo estudo específico atual para aferir o seu impacto, razão pela qual não há como se concluir que a reforma – instituída pela Lei             n° 14.112/2020 – tenha se mostrado inefetiva, muito menos que os processos que utilizaram suas inovações sejam morosos ou incapazes de liquidar ativos com a maximização do seu valor.

É certo que a Lei nº 14.112/20 trouxe diversas previsões que tornaram o processo falimentar mais ágil e dinâmico, como por exemplo, o afastamento do conceito de preço vil e fixação de prazo máximo de 180 dias para a ocorrência da alienação de ativos, independentemente das condições de mercado.

Por outro lado, os princípios do artigo 75 da LRF impõem, ainda, uma reflexão quanto à orientação trazida no PL de que os credores serão considerados os únicos protagonistas das decisões acerca dos rumos do processo falimentar, sobretudo diante dos interesses públicos e sociais que orientam a Falência.

Ademais, a governança da formação da vontade dos credores no processo falimentar, tal como sugerido pelo PL, é outra questão que demanda atenção, isso porque, o projeto de lei reconhece que algumas de suas disposições se “aproveitaram” da experiência do processo de Recuperação Judicial, notando-se, assim, grande influência desta última na disciplina proposta para a assembleia geral de credores, em especial para deliberação do plano de Falência.

Inobstante, esse aproveitamento, exige cautela, pois, a despeito de ambos estarem disciplinados na mesma lei e integrarem o microssistema da insolvência, sua racionalidade é bastante distinta, especialmente porque o processo de Recuperação Judicial objetiva a negociação das condições de plano de recuperação judicial, com concessões recíprocas entre credores e devedor, com o intuito de prosseguimento da atividade empresarial e soerguimento da empresa; já o processo falimentar, ele é destinado à liquidação do empresário insolvente, alienando seus ativos, pagando seus credores e recolocando na economia, de forma célere, ativos produtivos.

Pelo PL, ainda, a assembleia de credores para análise do plano de falências somente será convocada se houver oposição de credores, titulares de 15% (quinze por cento) do total crédito da falência, dentro do prazo de 15 (quinze) dias de sua apresentação pelo gestor fiduciário; do contrário, será ele simplesmente homologado, sem a realização da assembleia. 

No PL não há clareza quanto aos limites da função deliberativa do Comitê de Credores, consoante deliberação da assembleia geral por maioria simples.

Resta evidente, também, que é preciso refletir sobre as mudanças sugeridas no tocante à política pública de tutela do crédito, na medida em que o PL admitiu o pagamento de juros para créditos extraconcursais, em detrimento de credores concursais.

Desta forma, mostra-se que os questionamentos acima apresentados indicam a necessidade de uma maior reflexão sobre alterações tão profundas propostas à legislação falimentar, dado que ainda não foram identificados todos os efeitos benéficos da Lei nº 14.112/20; ainda, é preciso ter cautela para aproveitar a experiência da Recuperação Judicial ao processo de Falência; e, finalmente, por ser imperioso um profundo debate acerca da conveniência e da oportunidade de apartar-se o direito das  políticas públicas de tutela do crédito. Acompanhemos, de perto, a tramitação deste PL, diante dos impactos (des)necessários ao processo de Falência.

O Supremo Tribunal Federal, Alienação Fiduciária de Imóveis e o Marco Legal das Garantias

A importância da temática voltou ao debate do mundo jurídico no decorrer dos últimos dias.

De fato, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 26/10/2023, que, “a execução extrajudicial do imóvel dado em garantia pelo devedor é compatível com as garantias processuais da Constituição – ou seja, que a cobrança, em cartório, do valor em débito, e o leilão extrajudicial do imóvel, no caso de não pagamento da mora, não violam o contraditório e a ampla defesa, não afastam o acesso do devedor ao Judiciário, nem afrontam o direito à moradia” (RE 860631/SP).

No mencionado julgado, o Supremo reconheceu a existência de repercussão geral do tema (982), o que significa que a decisão tomada no Plenário deve ser replicada nos casos semelhantes em outras instâncias.

A medida não impede o exame da questão pelo Judiciário, uma vez que a Lei n° 9.514/1997 estabelece que o fiduciante pode ir à Justiça caso verifique irregularidades na execução extrajudicial do imóvel.

É sabido que a alienação fiduciária de imóveis é o negócio jurídico que serve de título para a criação de um direito real de garantia: a propriedade fiduciária.

A sua origem remonta ao Direito Romano, no instituto da fiducia cum creditore, que se caracterizava pela transferência da propriedade de um bem móvel/imóvel para garantir o cumprimento de uma determinada obrigação firmada entre credor e devedor.

No direito brasileiro, a alienação fiduciária é regulamentada pela Lei           nº 9.514/97, que assegura a realização da operação de financiamento ou empréstimo para pessoa física ou jurídica, configurada como situação de empréstimo com garantia de imóvel.

O Código Civil de 2002, no artigo 1.368-B, incluído pela Lei n°13.043/2014, determinou expressamente a sua natureza jurídica ao prever que: “A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor”.

Trata-se, portanto, de direito real de garantia, decorrente de um contrato, cuja constituição depende do registro na Matrícula Imobiliária correspondente.

A alienação fiduciária de imóveis revolucionou – e ainda revoluciona – o mercado de crédito imobiliário, sendo uma garantia real usada em quase 100% (cem por cento) das operações de compra e venda de imóveis no Brasil.

Segundo a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a modalidade de alienação fiduciária representa 98,2% (noventa e oito vírgula dois por cento) do financiamento bancário destinado à aquisição de imóveis, e que no ano de 2020 havia 7 milhões de operações ativas garantidas por esse modelo.

A grande questão é que a Lei que regula a Alienação Fiduciária de Imóveis, não é nova, e, desde o ano de 1997, estimula a resolução do conflito – credor x devedor – por meio de procedimento extrajudicial junto ao Cartório de Imóveis que possui a Matrícula do bem. A iniciativa legislativa, existente na Lei n° 9.514/1997, de balanceamento entre a proteção pelos riscos assumidos pela instituição credora e a preservação dos direitos fundamentais do devedor, é, extremamente louvável diante de um Judiciário tão congestionado.

Dito isto, percebe-se que não houve inovação do Supremo Tribunal Federal ao validar uma Lei já existente desde o ano de 1997.

Na verdade, o recente julgamento do STF se mostra como uma cortina de fumaça para o Marco Legal das Garantias de Empréstimo (Lei n° 14.711), sancionado no último dia 30/10/2023.

A mencionada Lei reformula regras sobra a garantia real dada em empréstimos, como hipoteca ou alienação fiduciária de imóveis, aperfeiçoando, portanto, a Lei n° 9.514/1997, tendo incluído, em apertada síntese:

  1. Na Lei n° 13.476/17, foram inseridos os artigos 9º-A a 9º-D, que regulam a Alienação Fiduciária Recarregável;
  2. Na Lei n° 6.015/73, inserida nova alínea (37), no artigo 167, inciso II, para averbação da Alienação Fiduciária Recarregável;
  3. No Código Civil, o artigo 853-A passou a regular que, qualquer garantia poderá ser constituída, levada a registro, gerida e ter a sua execução pleiteada por agente de garantia designado pelos credores;
  4. Ainda no Código Civil, (i) foi inserido o §2º ao artigo 1.477, para prever que o inadimplemento da obrigação garantida por hipoteca faculta ao credor declarar vencidas as demais obrigações de que for titular garantidas pelo mesmo imóvel; (ii) foi alterado o artigo 1.478, para simplificar o procedimento de sub-rogação, que pode ocorrer a qualquer tempo e não mais depende de prévia oferta ao credor da primeira hipoteca; e, (iii) foi inserido o artigo 1.487-A, para prever a extensão da hipoteca à garantia de novas obrigações com o mesmo credor;
  5. Na Lei n° 9.514/97 foram diversas alterações.

Com a nova Lei, será possível alienar a mesma propriedade em outros empréstimos feitos na mesma instituição ou em concorrentes, por exemplo. Outro objetivo é alavancar a economia do país, ampliando o acesso ao crédito.

Resta, pois, aguardar os acontecimentos das inovações introduzidas na Lei n° 9.514/1997, pelo novo Marco Regulatório. Mas, uma coisa é fato: as Instituições Financeiras passarão a conceder uma garantia imobiliária com maior nível de segurança, dado que haverá uma melhora na leitura de riscos de cada uma das transações, o que, por sua vez, incentiva a concessão de crédito.

A recente recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e os impactos nas ações de Recuperação Judicial

No último dia 08 de agosto próximo passado, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) – o órgão incumbido do controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público Brasileiro – editou a Recomendação n° 102/2023, que dispõe sobre o aprimoramento da atuação do Ministério Público nos casos de recuperação judicial e falência de empresas.

A ideia contida na Recomendação n° 102/2023 é orientar e aperfeiçoar a atuação do Ministério Público no emprego da Lei de Recuperação Judicial e Falências de empresas e em situações correlatas e assemelhadas (Lei n° 11.101/2005), visando a salvaguardar o interesse público que decorre da necessidade de aplicar eficazmente as ferramentas legais do sistema de insolvência empresarial, a fim de evitar ou reduzir e minimizar os prejuízos sociais que dela possam advir.

De fato, várias são as implicações sociais envolvendo os institutos da Recuperação Judicial e da Falência, especialmente se considerarmos que: (i) a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por finalidade assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça social, observando, dentre alguns princípios, a função social da propriedade e a redução das desigualdades regionais e sociais; (ii) a aplicação ineficaz das ferramentas legais do sistema de insolvência empresarial gera prejuízos sociais gravíssimos, seja pelo encerramento de atividades viáveis, com a perda dos potenciais empregos, tributos e riquezas, seja pela manutenção artificial do funcionamento de empresas inviáveis, circunstância que impede a produção de benefícios econômicos e sociais e atua em prejuízo do interesse da sociedade e do adequado funcionamento da economia; e, (iii) o Ministério Público é instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, atribuição atrelada ao interesse público que decorre da função social da empresa.

Assim, tem-se que a atuação especializada do Ministério Público nos processos de recuperação judicial e de falência de empresas atende de forma mais eficiente e satisfatória o interesse público a eles afetos.

O Órgão Ministerial (Estadual e do Trabalho) atuará, por exemplo, na prevenção e no combate às fraudes trabalhistas com repercussão em processos de recuperação judicial e falência, evitando a concretização de situações fraudulentas que promovem o esvaziamento patrimonial da empresa, a criação de falsos títulos executivos habilitáveis ou o relevante prejuízo a trabalhadores.

Na venda de ativos, p.ex., o Ministério Público verificará se o administrador judicial apresentou auto de arrecadação de acordo com os requisitos previstos no artigo 110 da Lei nº 11.101/2005 e o plano de realização de ativos, fiscalizando o seu cumprimento, inclusive, no que pertine às formalidades dos editais dos leilões respectivos.

Pela Recomendação do CNMP, o Ministério Público avaliará a idoneidade e a eficiência do administrador judicial durante todo o processo, na forma do que preconiza o artigo 22 da Lei nº 11.101/2005, pleiteando a sua substituição quando necessário.

Ainda, em sendo oportunizada vista dos autos ao Ministério Público antes do deferimento do processamento da recuperação judicial, sua manifestação analisará: I – a competência do juízo (artigo 3º da Lei nº 11.101/2005); II – a regularidade formal dos documentos que acompanham a petição inicial (artigo 51 da Lei nº 11.101/2005); e III – o preenchimento dos requisitos à legitimidade ativa (artigo 48 da Lei nº 11.101/2005).

Percebe-se, pois, um grande avanço para o aprimoramento da atuação do Ministério Público em processos de insolvência. A uma, para buscar, sem prejuízo da independência funcional de seus órgãos e membros, uma homogeneidade de atuação que proporcionará segurança jurídica na aplicação da Lei n° 11.101/05. A duas, porque servirá como valiosa orientação para promotores que não possuam especialização na matéria, mas, por circunstâncias comuns da carreira, devam oficiar em processos de falência, recuperação judicial e extrajudicial. De fato, um grande ganho para os processos de recuperação judicial e de falências.

A Recuperação Judicial, os Créditos Trabalhistas e a Desconsideração da Personalidade Jurídica no âmbito laboral

O processo de Recuperação Judicial, cujo marco regulatório é a Lei n° 11.101/2005, tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa devedora, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. É o que se chama do princípio da preservação da empresa, previsto no artigo 47 da Lei n° 11.101/2005.

O mencionado princípio recuperacional foi concebido, pelo legislador, à luz do que dita a nossa Constituição Federal que, ao regular a ordem econômica, impõe a observância dos postulados da função social da propriedade (artigo 170, inciso III), como também, a busca do pleno emprego (inciso VIII), o que só poderá ser atingido se as empresas forem preservadas.

A Lei de Recuperação Judicial e Falências determina, para os créditos trabalhistas (Classe 1), que os valores de natureza estritamente salarial, limitados até 150 (cento e cinquenta) vencidos nos 03 (três) meses anteriores à decretação da recuperação judicial e/ou falência, até o limite de 05 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, deverão ser pagos tão logo haja disponibilidade em caixa.

Inobstante, temos percebido que a Justiça do Trabalho tem se utilizado muito do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para satisfazer o crédito de um trabalhador, cujo montante se encontra listado e habilitado em processo de recuperação judicial da empresa empregadora. Mas, será que tal comportamento se coaduna com o princípio da preservação da empresa tão preconizado na Lein° 11.101/2005?

Pois bem, a desconsideração da personalidade jurídica, na Justiça do Trabalho, é meio lídimo de satisfação da dívida pelo credor quando as tentativas de fazê-lo em face do devedor originário malograram.

O artigo 789 do Código de Processo Civil estabelece que o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei, o que significa dizer que a satisfação da dívida enseja um dever para o devedor e uma responsabilidade para o seu patrimônio. É cediço que a pessoa do sócio não se confunde com a pessoa jurídica.

Os artigos 49-A e 1.024 do Código Civil, por sua vez, consagram o “princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas”, que nada mais é, nos termos do parágrafo único do artigo 49-A mencionado, do que um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

Ou seja, a responsabilidade patrimonial do sócio encontra restrição nos artigos 790, inciso II, cumulado com o 795, ambos do Código de Processo Civil, no sentido de que seus bens só respondem pela dívida societária nos casos previstos em lei.

A empresa detém o débito e a responsabilidade pelo pagamento, enquanto os sócios ao terem seus bens alcançados pelas dívidas da pessoa jurídica que compõem não possui débito, mas se tornam responsáveis pela obrigação contraída.  

Em verdade, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica surgiu unicamente com o intuito de ultrapassar pontualmente a autonomia patrimonial da pessoa jurídica em razão do uso indevido desta e não a personalidade jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica permite que bens de terceiros sejam processualmente excutidos para satisfazer dívida de credor que não obteve êxito para tanto do devedor originário.  Os requisitos para desconsideração da personalidade jurídica encontram-se presentes em diversas normas do ordenamento jurídico, a saber: art. 50, CC; art. 28, CDC; art. 2°, §2°, da CLT; art. 135 do CTN; arts. 117, 158, 245 e 246 da Lei n. 6.404/76;  art. 4° da Lei n. 9.605/98; art. 18, §3°, da Lei n. 9.847/99; art. 34 da Lei n. 12.529/2011; e art. 14 da Lei n. 12.846/2013.

Na esfera trabalhista, a 6ª turma do TRT da 1ª região, recentemente, negou provimento a um agravo de petição interposto pelos sócios de uma empresa de serviços gerais em processo de recuperação judicial. Condenados a responder subsidiariamente pelo inadimplemento dos créditos trabalhistas de um ex-empregado, os empresários alegaram que a inclusão no polo passivo da execução só caberia se comprovada a má administração da empresa, o que não ocorreu.

A relatora do acórdão, ao analisar o recurso, quanto à alegação de suspensão da execução, lembrou que conforme o disposto no artigo 6º da Lei n° 11.101/05, a abertura do processo de recuperação judicial suspende o curso de todas as execuções pelo prazo de 180 dias, salvo disposição judicial que amplie esse prazo. É o chamado stay period. No presente caso, a magistrada verificou que o referido prazo já estava superado e não havia, nos autos, prova de que foi prorrogado judicialmente, tendo destacado que:

“Revendo posicionamento até então adotado, passo a defender o entendimento de que nos casos em que a empresa executada está submetida a processo de recuperação judicial ou falência, há possibilidade de redirecionamento da execução, na Justiça do Trabalho, contra os sócios responsabilizáveis ou responsáveis subsidiários, antes mesmo de encerrado o processo no Juízo Universal.”

Percebe-se com a afirmação acima que o entendimento da Justiça do Trabalho para credores trabalhistas é no sentido de estimular a manutenção das reclamações existentes, mesmo que os créditos dos trabalhadores estejam listados e habilitados no processo recuperacional, dado que a execução pode ser imediatamente direcionada aos sócios, independentemente do desfecho do processo falimentar ou de recuperação judicial, bastando haver a confusão patrimonial entre os bens dos sócios e da empresa, não sendo necessária a comprovação de fraude ou má administração, como exige a legislação civil.

Tem-se a impressão que a Justiça do Trabalho, smj, desconsidera a importância da preservação da empresa e pretende acabar com a recuperação judicial para crédito Classe 1 (de reclamantes) mediante despersonalização da pessoa jurídica de forma simples e automática, mesmo sem o preenchimento dos requisitos da lei civil. É preciso, urgente, fomentar o debate para que este entendimento seja modificado, preservando o instituto da recuperação judicial.

A primeira multa aplicada pela ANPD

No mês de comemoração do 5º (quinto) aniversário da data de promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) aplicou a sua 1ª (primeira) multa.

De fato, o Diário Oficial da União (DOU), trouxe na sua Edição n° 127, publicada em 06/07/2023, o detalhamento da 1ª (primeira) multa aplicada pela ANPD, contra uma microempresa, que sofreu: (i) uma advertência, sem imposição de medidas corretivas, por infração ao artigo 41 da LGPD (indicação de encarregado pelo tratamento de dados pessoais ou DPO); (ii) uma multa simples,  no valor de R$ 7.200,00 (sete mil e duzentos reais), por infração ao artigo 7º da LGPD (tratamento irregular de dados pessoa); e, (iii) outra multa simples, também estipulada em R$ 7.200,00 (sete mil e duzentos reais), por infração ao artigo 5º do Regulamento de Fiscalização (Resolução CD/ANPD nº 1, de 28 de outubro de 2021).

Segundo a ANPD, a microempresa, durante a fiscalização deveria:

I – fornecer cópia de documentos, físicos ou digitais, nas condições estabelecidas pela ANPD;

II – permitir o acesso às instalações e todos os ativos de informação para a avaliação das atividades de tratamento de dados pessoais, em seu poder ou em poder de terceiros;

III – possibilitar que a ANPD tenha conhecimento dos sistemas de informação utilizados e as informações oriundos destes instrumentos;

IV – submeter-se a auditorias realizadas ou determinadas pela ANPD; e,

V – manter os documentos físicos ou digitais durante todo o prazo de tramitação de processos administrativos nos quais sejam necessários

O Despacho possibilitou, ainda, caso o autuado resolva, renunciar expressamente ao direito de recorrer da decisão de 1ª (primeira) instância, fará jus a um fator de redução de 25% (vinte e cinco por cento) no valor da multa aplicada.

Fato curioso para os operadores do Direito que atuam com a temática é que a multa aplicada pela ANPD não registra a fórmula da dosimetria da pena. Isso porque muito se tratou a respeito do cálculo da pena a ser imposta pela Autoridade, com amplo debate social sobre o tema. E, ao aplicar a 1ª (primeira) multa, a Autoridade não consignar o seu racional, deixa a lamentável impressão de que algum lapso ocorreu.

Outra curiosidade é que a própria ANPD, por meio da Resolução CD/ANPD n° 2, de 27 de janeiro de 2022, regulamentou, no seu artigo 11, que as microempresas não são obrigadas a indicar o encarregado pelo tratamento de dados pessoais exigidos pelo artigo 41 da LGPD. Aplicar uma multa, neste sentido, é um contrassenso ao que a própria ANPD regulou.

Inobstante, uma coisa é fato, as empresas precisam correr para se adequar aos ditames da LGPD (que não ocorre da noite para o dia, é preciso tempo), especialmente, porque a ANPD já começou a atuar e aplicar as penas autorizadas para tanto. É preciso cuidar dos dados pessoais que circulam nas empresas e órgãos públicos, observando os ditames da LGPD.

O testamento pode tratar de todo o patrimônio do testador?

Instituto de Direito Civil, a Sucessão Testamentária possibilita, por meio do Testamento, a disposição da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois da morte de uma pessoa natural.

O Testamento é o instrumento garantidor de que o ato de última vontade de uma pessoa seja respeitado após a sua morte. Ele pode ser realizado de forma Pública, Cerrada ou Particular, observando-se, ainda, na sua confecção, alguns requisitos previstos em lei. Há também os Testamentos Especiais, como o militar, de utilização mais restrita. Mas, o objeto do nosso texto se restringe aos Testamentos Comuns.

Pois bem, por meio do Testamento Comum (público, cerrado ou particular), o Testador institui seus herdeiros ou legatários (os que recebem um bem específico do Testador).

Na dicção do artigo 1.857, do Código Civil, o Testador pode dispor sobre a totalidade dos seus bens, excetuando-se a parte legítima dos herdeiros necessários, nos moldes do §1º do citado dispositivo legal.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), analisando questão acerca da (in)validade de um Testamento entendeu que “apesar da interpretação literal do § 1º do artigo 1.857 do Código Civil sugerir que a legítima dos herdeiros necessários não é passível de disposição em Testamento, o texto deve ser analisado em conjunto com as demais disposições que regulam o tema, e que demonstram não ser essa a melhor interpretação”.

A Ministra Nancy Andrighi, relatora do Recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ), destacou que “a legítima dos herdeiros necessários poderá ser referida e constar no Testamento, porque é lícito ao Testador, em vida e desde logo, pensar, organizar e estruturar a sua sucessão, desde que seja mencionada justamente para destinar a metade indisponível ou mais aos referidos herdeiros, sem que haja privação ou redução da parcela a que fazem jus por força de lei”.

O novel entendimento declarado pelo Superior Tribunal de Justiça preconiza a interpretação conjunta e teleológica das normas que tratam da liberdade conferida ao autor da herança para externar sua vontade acerca da disposição de seus bens, por ato entre vivos ou de última vontade, como é o caso do Testamento, e, reconhece a validade de cláusula testamentária que faça referência à totalidade do patrimônio do Testador, desde que preservada a legítima, que pertence aos herdeiros necessários por expressa previsão do artigo 1.846 do Código Civil.

Grande avanço para o Direito Sucessório.

A dissolução parcial de sociedade e o impacto no patrimônio do sócio

Dentre as várias possibilidades jurídicas para o encerramento de uma sociedade empresarial, em relação a um dos sócios, encontra-se a ação de dissolução parcial de sociedade.

Na dicção do Código de Processo Civil, a ação de dissolução parcial de sociedade visa resolver a sociedade em relação ao sócio falecido, excluído ou que exerceu o direito de retirada ou recesso; a apuração dos haveres do sócio falecido, excluído ou que exerceu o direito de retirada ou recesso; ou, somente a resolução ou a apuração de haveres.

Como consequência natural da dissolução parcial de sociedade, deve-se verificar qual é o valor da quota e/ou ação do sócio falecido e/ou excluído e/ou retirante, sendo um importante desafio verificar-se e regular-se adequadamente a apuração dos haveres devidos.

Mas, quais os impactos que uma ação de dissolução parcial de sociedade tem em relação ao patrimônio dos demais sócios?

É de conhecimento de todos os operadores do Direito que os sócios respondem por seus atos societários, perante terceiros, desde o primeiro momento em que se inicia a operação negocial.

O Código Civil, por sua vez, regula, nos artigos 1.001 a 1.009, a responsabilidade dos sócios em relação aos direitos e obrigações entre si e terceiros, que devem ser observadas e cumpridas durante todo tempo em que a relação jurídica foi firmada, levando-se em conta, principalmente, o percentual de sua participação no capital social.

Isso significa que, em caso de eventual descumprimento da sociedade para com um sócio, a responsabilidade deste ficará limitada à sua quota social. E, seu patrimônio pessoal, via de regra, não será atingido, diante da regra da autonomia patrimonial da sociedade, prevista no artigo 49-A, do Código Civil, segundo a qual “a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores”.

Até então, tinha-se um cenário de certa tranquilidade patrimonial para os sócios de uma sociedade empresarial, inclusive em sede de ação de dissolução parcial de sociedade, ante a regra dos artigos 604, § 1º, e, 609, ambos do Código de Processo Civil cumulado com o artigo 1.031, §2º, do Código Civil.

Inobstante, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em recente decisão, no recurso n° 2040083-24.2023.8.26.0000, envolvendo o tema da ação de dissolução parcial de sociedade, permitiu que o patrimônio pessoal do sócio remanescente fosse bloqueado, inclusive, sem a necessidade de apresentação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.  

Segundo o Relator, “tem-se discutido qual a interpretação mais adequada e correta para o artigo 601, do Código de Processo Civil, identificando responsabilidade efetiva dos sócios remanescentes, que usufruem do capital fornecido pelo sócio retirante ou excluído enquanto não pagos seus haveres, sendo certo que não podem, simplesmente, impor a transferência dos riscos empresariais para quem teve rompido o vínculo societário”.

Entenderam os julgadores da Corte Paulista que “não é admissível que os sócios remanescentes, pura e simplesmente, capturem o capital do antigo sócio, usufruam do patrimônio alheio (muitas vezes, como no caso concreto, durante anos) e, ao final, imponham um inadimplemento irreversível, inviabilizando, em virtude dos resultados negativos da atividade empresarial realizada após o rompimento do vínculo societário, o pagamento dos haveres devidos pela pessoa jurídica, ficando isentos de qualquer responsabilidade patrimonial”.

Segundo eles, “os artigos 601 e 604, §1º, do Código de Processo Civil precisam ser interpretados de maneira conjugada e em consonância com a dinâmica funcional da atividade empresarial exercida por uma sociedade, como ente imaterial, não sendo viável, nas circunstâncias concretas aqui expostas, deixar de reconhecer a responsabilidade patrimonial dos agravantes. Não é, nem mesmo, necessária a desconsideração da personalidade jurídica e a perquirição das hipóteses concretas previstas no artigo 50, do Código Civil, pois, conforme as regras processuais regentes do procedimento especial da ação de dissolução parcial de sociedades, os sócios remanescentes são, desde o início do trâmite do processo, incluídos na relação processual. Há de se destacar, inclusive, que esta inclusão obrigatória perderia sua razão de ser caso não pudessem ser extraídos os reflexos patrimoniais em relevo, os quais, como o acima exposto, derivam de uma interpretação sistemática da legislação vigente”.

Assim, percebe-se que, doravante, apesar de todo regramento quanto à responsabilização do sócio numa sociedade, o seu patrimônio poderá sofrer, de forma mais simplificada, os impactos decorrentes de uma ação de dissolução parcial de sociedade, sem que haja a prévia instauração do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, tudo isso para se evitar uma “fuga” da responsabilidade do sócio remanescente quanto às suas obrigações societárias.

A Tutela de Urgência na Recuperação Judicial

Vivemos numa sociedade que adotou a cultura da urgência, iniciado nas rotinas laborais antes de invadir o cotidiano doméstico e empresarial.

Etimologicamente, a palavra “urgência” significa algo que necessita de uma solução imediata.

Diante dessa nova realidade, a possibilidade de interação humana se tornou mais rápida, houve também uma mudança na percepção da fluidez de nossas tarefas, e passamos a nos entender como capazes de executar multitarefas simultaneamente.

Dessa forma, institui-se uma “cobrança” por uma entrega maior em um tempo menor, pois tudo passou a ser urgente. É a urgência zero, seguida da urgência um e assim, sucessivamente, diariamente.

Transpondo essa urgência para o ambiente societário, especialmente de empresa em crise, temos visto a importância, na prática, das modificações ocorridas na Lei n° 11.101/2005, que disciplina a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, ocorrida em dezembro de 2020, por meio da qual restou inserida, no ordenamento jurídico brasileiro, uma forma de antecipação dos efeitos da decisão que defere o processamento da recuperação judicial em seu bojo, atendendo ao fator urgência da empresa insolvente.

Em que pese essa ausência legal até antes de dezembro de 2020, quando ocorreu a reforma da Lei, utilizava-se de forma subsidiária a previsão contida no Código de Processo Civil e, em respeito ao princípio da preservação da empresa, a tutela de urgência pleiteada, via de regra, era deferida.

Após a reforma da Lei n° 11.101/05, a possibilidade de antecipação dos efeitos da decisão que defere o processamento da recuperação judicial tornou-se prática comum, iniciando-se uma nova fase do sistema de insolvência, com a expectativa de mais eficiência.

Tal eficiência refletiu-se na redação do atual artigo 6º, §12 da Lei n° 11.101/05 que diz: “Observado o disposto no art. 300 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), o juiz poderá antecipar total ou parcialmente os efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial.”

O mencionado dispositivo legal tem sido colocado em prática e tem sido uma opção relevante para as empresas que buscam preservar a atividade empresarial até se preparar para protocolar o pedido de recuperação judicial.

Para além da previsão contida no § 12, do artigo 6º da Lei n° 11.101/2005, a reforma inseriu o artigo 20-B, § 1º, que trata da tutela de urgência cautelar.

A crise na Americanas, na Oi, em alguns Clubes Esportivos de Futebol e na Cervejaria, jogou holofotes para essa saída jurídica.

Mas, é preciso diferenciar a tutela de urgência concedida com base no artigo 6º, § 12, da tutela cautelar prevista no artigo 20-B, § 1º, todos institutos previstos na Lei n° 11.101/2005.

A opção pelo uso da tutela de urgência antecipada, com base no artigo 6º, deixa os credores sem disposição para negociação. Isso porque o dispositivo obriga a empresa a pedir, no prazo de 30 dias, a recuperação judicial, sob pena de perda da eficácia da medida.

Já a tutela fundamentada no artigo 20-B, § 1º, da Lei n° 11.101/2005, autoriza o Poder Judiciário a conceder medida cautelar, espécie de tutela de urgência, consistente na suspensão, por 60 dias, das execuções movidas contra o devedor.

Nesta última medida, o intuito do legislador é impedir a expropriação do patrimônio do devedor durante o período em que este se organiza e se prepara para a distribuição da recuperação judicial, tratando-se de medida de cunho meramente preparatório — tanto que, nos termos do artigo 20-B, §3º, sobrevinda a recuperação judicial, o stay period será descontado do prazo pelo qual as execuções ficaram suspensas durante a mediação preparatória.

Superada essa breve distinção, percebe-se que, em meio a um cenário de crise econômico-financeira reversível, as medidas de urgência no processo de recuperação judicial podem funcionar como importantes ferramentas para a reestruturação e soerguimento empresarial, cabendo ao profissional do Direito, pois, diante do caso concreto, aplicar a medida necessária e adequada.

É possível a participação de empresa em Recuperação Judicial em processo licitatório?

O instituto da recuperação judicial possui como pilares os princípios da preservação da empresa, consubstanciado no artigo 47 da Lei n° 11.101/2005 (LREF), que guarnecem os fundamentos que devem nortear a condução do processo dando suporte à empresa viável, a função social e o estímulo à atividade econômica.

Nesse viés, a circunstância de a empresa se encontrar em recuperação judicial, por si só, seria impeditivo para contratação com o Poder Público, ainda que não seja dispensada da apresentação das certidões negativas de débitos fiscais?

Conforme preconiza o artigo 31 da Lei n° 8.666/93 (Lei de Licitação), não é necessária a apresentação da certidão negativa de recuperação judicial para a participação de empresas em recuperação judicial em procedimento licitatório, mas, sim, certidão negativa de falência e concordata.

Logo, não há que se confundir certidão negativa de falência e concordata, exigida no mencionado artigo 31, inciso II, da Lei de Licitação, com certidão negativa de recuperação judicial, mesmo que a Lei de Recuperação Judicial e Falência tenha realizado tal substituição entre os institutos jurídicos.

Mas, o assunto não é tão pacífico assim na doutrina e jurisprudência.

Há, na doutrina, quem entenda que os efeitos da concordata sobre a contratação administrativa devem ser aplicados à recuperação judicial, porquanto haveria a presunção de insolvência da empresa em crise. Desse modo, empresas em procedimento recuperatório não poderiam participar de certames públicos. Nesse sentido, é a lição de Marçal Justen Filho (in “Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”. 16ª Edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014; pág. 638).

Em entendimento diverso, existe corrente doutrinária no sentido de que, se a Lei de Licitações não foi alterada para substituir certidão negativa de concordata por certidão negativa de recuperação judicial, não poderia a Administração passar a exigir tal documento como condição de habilitação, haja vista a ausência de autorização legislativa (NIEBUHR, Joel de Menezes in “Licitação Pública e Contrato Administrativo”. 4ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2015; pág. 447).

Assim, as empresas submetidas à recuperação judicial estariam dispensadas da apresentação da referida certidão.

Vale lembrar que norma restritiva, como é o caso do art. 31 da Lei nº 8.666/1993, não admite interpretação que amplie o seu sentido, sobretudo quando se tratar de restrição de direitos, à luz do princípio da legalidade.

Dentro desta perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recente julgado da 2ª Turma (Resp n°1.826.299/CE), reforçou o entendimento de que “a exigência de apresentação de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada a fim de possibilitar à empresa em recuperação judicial participar do certame licitatório, desde que demonstre, na fase de habilitação, a sua viabilidade econômica”.

O encaminhamento do entendimento acima, pelo STJ, reforça o escopo primordial da Lei nº 11.101/2005 (art. 47), que é “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Diferentemente da concordata, cujo objetivo precípuo era o de assegurar a proteção dos credores e a recuperação de seus créditos, o processo de recuperação judicial busca a proteção da empresa que se encontre em dificuldades econômicas.

Como bem observa Celso Marcelo de Oliveira, “a preocupação com o papel social que a empresa exerce na sociedade é a base que justifica todos os esforços no sentido de dar à empresa uma oportunidade de recuperação” (in “Comentários à nova Lei de Falências”. São Paulo: Ed. IOB Thomson, 2015; pág. 224).

Sendo assim, a interpretação sistemática dos dispositivos das Leis nºs 8.666/1993 e n. 11.101/2005 leva à conclusão de que é possível uma ponderação equilibrada entre os princípios nelas imbuídos, pois a preservação da empresa, a sua função social e o estímulo à atividade econômica atendem também, em última análise, ao interesse da coletividade, uma vez que se busca a manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e dos interesses dos credores.

Com efeito, negar à pessoa jurídica em crise econômico-financeira o direito de participar de licitações públicas, única e exclusivamente pela ausência de entrega da certidão negativa de recuperação judicial, vai de encontro ao sentido atribuído pelo legislador ao instituto recuperacional.

Celebremos, pois, o reforço do entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca do assunto, o que, por certo, balizará os Tribunais Estaduais e Federais por todo o País.

Algumas novidades da ANPD

O ano de 2023 acabou de começar e, com ele, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) deixou de ser uma autarquia com status de agência reguladora vinculada à Secretaria Geral da Presidência da República e passou a ser vinculada ao Ministério da Justiça.

O instrumento jurídico utilizado para tanto foi o Decreto n° 11.348, datado de 1º de janeiro de 2023, que, estabeleceu, também, a competência do Ministro da Justiça e Segurança Pública para ditar as políticas do Tratamento de Dados Pessoais, inclusive, com estratégia comum baseada em modelos de gestão e de tecnologia que permitam a integração e a interoperabilidade dos sistemas de tecnologia da informação dos entes federativos, nas matérias afetas à Justiça e Segurança Pública.

A nova vinculação da ANPD reflete no Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade que, também, fica vinculado ao Ministério da Justiça.

Os profissionais que lidam com proteção de dados no Brasil estão confiantes que esses novos rumos da ANPD viabilizem a sua completa estruturação, para que as suas atribuições, previstas no artigo 55-J da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), sejam executadas na íntegra.

Por hora, a ANPD vem editando seus atos normativos, especialmente, de cunho pedagógico, a exemplo do lançado no último dia 23 de dezembro de 2022. Trata-se do novo formulário para comunicação de incidentes de segurança (CIS) pelos controladores de dados pessoais para a ANPD. 

Prevista pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), a comunicação de incidente de segurança (CIS) permite aos titulares tomarem conhecimento de eventuais violações de seus dados pessoais. Possibilita, também, que os agentes de tratamento demonstrem à Autoridade o cumprimento de suas obrigações legais relativas ao incidente e a adoção de medidas de segurança adequadas às suas atividades de tratamento de dados.

O novo formulário foi desenvolvido para facilitar o preenchimento pelos controladores e a análise das comunicações de incidentes pela ANPD, sendo certo que restou ampliado o uso de respostas estruturadas, bem assim, foram incluídas orientações sobre o processo de comunicação de incidentes no seu bojo.

O novo formulário só pode ser encaminhado em formato pdf, por meio do Peticionamento Eletrônico do SUPER.BR (Sistema Único de Processo Eletrônico em Rede). 

A implantação do novo formulário para a comunicação de incidente de segurança (CIS) reforça a importância da atuação, junto às empresas, do Encarregado de Dados, ou DPO – Data Protection Officer, impondo, por conseguinte, a necessária e indispensável adequação dos diversos setores da economia brasileira aos ditames da Lei Geral de Proteção de Dados.