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Inseminação artificial caseira e dupla maternidade. O Direito da Saúde e o Direito das Famílias conversam a respeito do tema

Sabe-se que a concepção de filhos faz parte do projeto familiar de muitos indivíduos. No caso de famílias homoafetivas, o projeto parental pode resultar a partir da adoção ou da utilização de técnicas de inseminação. Especificamente no caso da escolha pela utilização das técnicas inseminação em relações homoafetivas entre mulheres, muitas delas têm utilizado a inseminação caseira. Tal método, entretanto, ainda não é reconhecido por lei, o que traz implicações sobre questões que perpassam pelo direito médico e da saúde e pelo direito das famílias.

No que toca a seara médica, são cabíveis os comentários sobre a técnica e seus desdobramentos legais.  De saída, menciona-se que o método carece de embasamento médico-científico. O procedimento consiste na obtenção de sêmen de forma clandestina e a introdução do material diretamente no canal reprodutivo feminino — ou até mesmo, com auxílio de um cateter, dentro do útero da mulher escolhida pelo casal homoafetivo para gestar.

O procedimento, em que pese possa ser exitoso na gestação, não é isento de riscos. O fato de não haver intervenção médica faz com que o sêmen do doador não seja previamente testado por profissionais. Desse modo, há risco de estar contaminado por ISTs ou de ser pouco fértil. Ademais, pode ocorrer infecções no canal reprodutivo recebedor.

Em que pese não seja regulamentada, a inseminação artificial caseira não é irregular. A prática só se torna ilegal se o sêmen for comprado — uma vez que tanto o Conselho Federal de Medicina quanto a Lei de Transplante de Órgãos proíbem a comercialização de gametas. No mais, por ainda não ser ainda regulamentada pela Justiça brasileira, já que não é uma técnica de reprodução reconhecida por lei, em havendo a concepção do bebê por meio de inseminação artificial caseira, só será possível registrar a criança com o nome das duas mães por meio de uma ação judicial. Nesse sentido, iniciam-se os desdobramentos da inseminação caseira no campo do direito das famílias.

Adentrando-se na seara do direito das famílias, tem-se que a dupla maternidade/paternidade homoafetiva passou a ser reconhecida pela jurisprudência brasileira após o provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual autorizou o registro civil com dois pais ou duas mães, independentemente de autorização judicial, mas apenas para os casos decorrentes da técnica de reprodução assistida, da adoção ou do reconhecimento voluntário socioafetivo.

Como se observa, o provimento 63/2017 silenciou quanto à inseminação artificial caseira, procedimento que vem sendo aplicado por muitos casais homoafetivos que pretendem ter filhos, mas se deparam com os altos custos de uma reprodução assistida.

Cumpre ressaltar que para o registro do filho com dupla maternidade havido de inseminação artificial perante o Cartório, o provimento exige a declaração do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida.

Fato é que regulamentada ou não, a inseminação caseira tem sido exitosa na concepção de filhos e, por esse motivo, no último ano diversos casais homoafetivos procuraram o Judiciário para obter o reconhecimento da dupla maternidade, obtendo êxito em suas demandas.

E não podia ser diferente.

A Constituição Federal confere proteção à família em seu artigo 226, §4º não fazendo qualquer distinção entre pais biológicos, socioafetivos ou homoafetivos. Além disso, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, a Constituição declara no §7º que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.

Em recente decisão proferida em 08/10/2021 pela 1ª Vara de Família e Sucessões do Foro Regional II de Santo Amaro, São Paulo/SP, a Juíza Vanessa Vaitekunas Zapater reconheceu o direito à dupla maternidade, argumentou que seria irrazoável, ilícito e inconstitucional permitir que apenas as crianças nascidas por meio da reprodução medicamente assistida pudessem ter o reconhecimento da filiação por duas mães.

A Magistrada destacou que todos os cidadãos têm direito a serem tratados com igualdade, sem distinção de gênero, e que a filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível (Lei 8.069/90, artigo 27), de modo que não se pode recusar este direito às crianças concebidas pela inseminação artificial caseira.

Essa decisão, por seu turno, estabelece a consonância entre dois institutos do direito: o direito médio e da saúde e o direito de família, sendo certo que retrata o avanço do desses direitos junto a sociedade, buscando abarcar as diversas formas de famílias já existentes. Nem sempre a Lei acompanha essa evolução com a celeridade necessária, mas, nesse cenário, a doutrina e a jurisprudência exercem papel relevante no preenchimento das lacunas existentes na Lei, permitindo-se amparar os direitos e decidir as demandas considerando as reais necessidades da sociedade atual.

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