Extensão da Regra de Impenhorabilidade de Caderneta de Poupança

O Código de Processo Civil é expresso em seu artigo 833, inciso X, ao afirmar que a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos não pode ser penhorada.

Tal regra de impenhorabilidade foi inserida pelos legisladores, com o claro intuito de garantia do mínimo existencial da pessoa física, estritamente relacionado com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, ou seja, o mínimo valor financeiro que possa dar garantia de saúde, alimentação, educação para si e para sua família.

No entanto, em que pese a regra aparentemente estrita do CPC, no recente julgamento do Recursos Especiais 1.660.671 e 1.677.144, a corte especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que esse limite pode ser estendido à conta corrente ou qualquer outra modalidade de aplicação financeira.

Nos recursos supramencionados a Fazenda Nacional defendia a tese de que a impenhorabilidade prevista no CPC seria restritiva, tendo aplicação apenas aos recursos depositados em poupança. O julgamento teve início em 2019, quando o Ministro Herman Benjamin seguiu a tese da Fazenda Pública, no entanto, na ocasião, o Ministro Luis Felipe Salomão divergiu do relator, ao entender que a proteção independe da natureza da conta em que os valores estão depositados, devendo ser observado a finalidade da proteção legal.

Ao retomar o julgamento em 2024, o Ministro Herman Benjamin retificou seu voto e declarou que a impenhorabilidade se aplica de forma automática aos valores em poupança, porém, caso haja bloqueio de valores em conta corrente ou outros investimentos pelo Bacenjud, é possível estender a regra com a comprovação da natureza dos recursos.

Sendo assim, nas palavras do relator: “Se a medida de bloqueio/penhora judicial por meio físico ou eletrônico atingir dinheiro mantido em conta corrente ou qualquer outra aplicação financeira, poderá, eventualmente, a garantia da impenhorabilidade ser estendida a tal investimento”. Chegou-se, por fim, à conclusão de que, desde que comprovado pela parte atingida pelo ato constritivo que o referido montante constitui reserva de patrimônio destinado a assegurar o mínimo existencial, independe a modalidade da conta onde os valores estão depositados.

(im) possibilidade de penhora de bem em construção sob o argumento de que se trata de bem de família

Em breve introdução ao tema, necessário tecer considerações sobre o conceito de bem de família, o seu breve histórico no sistema jurídico brasileiro e qual a finalidade de tal instituto na proteção da família.

A Lei º 8.009/90, foi criada com a finalidade de proteger a família, instituindo, assim, a impenhorabilidade do que é chamado de Bem de família, definido pela Lei como aquele bem que é utilizado como habitação da unidade familiar ou do casal.

Tal proteção garantida por Lei, considerada Direito fundamental, é de modo tão ampla, que abrange processos de todas as naturezas jurídicas, entre elas as mais tradicionais execuções cíveis, fiscais, trabalhistas e previdenciárias, existindo apenas algumas exceções fixadas pelo artigo 3º da Lei 8.009/90.

Sendo um direito fundamental, com direito amplo de proteção pelo Estado, o Superior Tribunal de Justiça tem sumulado diversos entendimentos sobre o tema, conforme explicitado na Súmula 364:

O imóvel residencial do próprio casal ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.”,

Bem como, como no entendimento adotado na Súmula 486, quando trata dos imóveis não utilizados para habitação, mas utilizados como meio de subsistência da família:

“É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.”

Ocorre que, em que pese o objetivo de proteção à família, os tribunais pátrios vinham adotando entendimento literal da Lei, sem admitir outras exceções à caracterização do que seria o Bem de Família, senão aquelas hipóteses já estabelecidas na legislação. Tal aplicação prática, no entanto, ia de encontro a evolução dos entendimentos jurisprudenciais formado de acordo com o desenvolvimento da sociedade.

É nessa perspectiva que a jurisprudência ganha relevância, posto que passa a ter significativa aplicação nos processos, com reflexos na própria vida social, porque indica os anseios e necessidades da sociedade, aptas a exigir prescrições legislativas.

E foi seguindo essa linha evolutiva que recentemente o Superior Tribunal de Justiça, por meio de entendimento da quarta turma, definiu que um imóvel em construção, pode ser considerado bem de família. Para tal caso, a caracterização do bem de família deve ser antecipada por decisão judicial.

No caso prático, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo concluiu pela penhorabilidade do bem, sob o fundamento de ser requisito ao deferimento da proteção legal estabelecida na Lei nº 8.009/90, servir o imóvel como residência, qualidade que não ostentaria o terreno com unidade habitacional em fase de construção/obra.

Por sua vez, o Ministro Relator do Recurso Especial nº 1960026, Marco Buzzi, destacou que a interpretação conferida pelas instâncias ordinárias não se coaduna à finalidade da Lei nº 8.009/90, que visa a proteger a entidade familiar, razão pela qual as hipóteses permissivas da penhora do bem de família devem receber interpretação restritiva. Esclarecendo, ainda, que “o fato de um imóvel não ser edificado, por si só, não impede a sua qualificação como bem de família, pois esta depende da finalidade que lhe é atribuída” Feitas essas considerações, tem-se que STJ vem pacificando entendimento por meio das suas 3ª e 4ª turma, no sentido de que, não estando o bem dentro das hipóteses de exceção que permitem a penhora do bem de família estabelecidos pela Lei, a caracterização do bem de família deve ser feito caso a caso, sempre por meio do Tribunal Local, que tem o dever de sempre resguardar a entidade familiar,  ou seja, ainda que o bem esteja em construção, é possível considerá-lo impenhorável quando a família tem a intenção concreta de residir ou utilizá-lo como sustento da unidade familiar, tão logo fique pronto, seguindo os entendimentos das Súmulas 364 e 486 do STJ.

Comentários Gerais à Lei nº 14.454/2022 – Limites ao Rol da ANS

A Lei º 14.454/2022, foi publicada recentemente, visando diminuir a judicialização de temas recorrentes no âmbito do Direito da Saúde, entre eles, a taxatividade do Rol da Agência Nacional de Saúde e os limites e atribuições das operadoras de saúde na cobertura de tratamentos médicos.

Em uma breve introdução ao tema de direito da saúde na Constituição Federal, temos que o mesmo é garantido por meio do art. 196, quando, em sua literalidade, afirma que: “A Saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Sendo assim, por ser um dever amplo do Estado, a Constituição Federal também estabelece por meio do art. 199, a possibilidade de participação da iniciativa privada na assistência à saúde, corroborando, assim, com a amplitude de prestação da saúde por meio de políticas econômicas para garantir o acesso universal a toda população.

Diante da participação da iniciativa privada, o setor fica submetido à fiscalização e controle do Estado mediante a Agência Nacional de Saúde – ANS, a qual tem por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no País.

Assim sendo, como parte de suas responsabilidades, foi criado o Rol da ANS, que consiste em uma lista previamente estipulada de Procedimentos e Eventos em Saúde, que garante e torna público o direito assistencial dos beneficiários dos planos de saúde, validando para os contratados a partir de 1º de janeiro de 1999, contemplando os procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde, em cumprimento ao disposto da
Lei nº 9.656, de 1998.

O primeiro Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde estabelecido pela ANS foi o definido pela Resolução de Conselho de Saúde Suplementar – CONSU 10/1998. No entanto, grande discussão norteava o meio jurídico com relação a taxatividade ou relatividade desse.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça havia definido, por meio de recurso em repercussão geral, tese na qual estabeleceu que o rol de procedimentos e tratamentos médicos da ANS seria taxativo.

A taxatividade, prevista na decisão, permitia os planos de saúde negarem a cobertura de tratamentos médicos ainda não previstos no rol e criava critérios a serem observados em processos e determinações judiciais de custeio compulsório nos casos excepcionais.

Diante do impacto dessa decisão, foi apresentado o Projeto de Lei nº 2033/22, que foi aprovado em ambas casas legislativas, se tornando a Lei nº 14.454/22, que altera diversos dispositivos da Lei nº 9.656/1998.

O texto legal estabelece no art. 1º, §12º, que o rol da ANS servirá apenas como referência básica para os planos privados de saúde, contratados a partir de 1º de janeiro de 1999. Com isso, a nova normativa impôs à ANS editar norma com a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de procedimentos de alta complexidade.

Como resultado, o §13º também foi alterado para estabelecer que em caso de tratamentos médicos ou odontólogos não previstos no Rol de procedimentos, a cobertura deve ser autorizada desde que os procedimentos cumpram com as seguintes condições: “I – exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II – existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.” (NR) Feitas essas considerações, tem-se que a nova lei não elimina a possibilidade de judicialização de ações, mas, em verdade, fixa critérios mais objetivos e torna mais fácil a compreensão das situações em que determinados tratamentos devem ser concedidos, quando obedecidos os critérios do §13º, ou negados.