Reflexão sobre o marco legal do transporte público coletivo urbano

O transporte público de passageiros enfrenta um momento de grande expectativa em relação à possibilidade de aprovação, ainda neste ano, do marco legal da categoria, pleito defendido por muitos como a salvação do setor.

No entanto, oportuno discorrer sobre a real necessidade de mais uma norma para repercutir o assunto. E a dúvida ocorre justamente em razão da vasta quantidade de leis, decretos, artigos, incisos e parágrafos que se relacionam à temática. Nesta toada, é prudente refletir se o texto apenas somará ao que já existe no ordenamento brasileiro, sem acrescentar conteúdo capaz de dar um salto de qualidade ao serviço. Me parece mais uma tentativa de trunfo político num compilado de previsões já existentes, que na prática não amenizará a preocupação que paira.

Dentre algumas normas aplicadas ao setor, estão desde a Constituição Federal, passando pela Lei Geral de Licitações, alterada recentemente, Lei das Concessões, Parcerias Público Privadas, Política Nacional da Mobilidade Urbana, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o Estatuto da Cidade, até normativos estaduais e municipais que, dentro de cada competência constitucional, atuam sobre o tema.

Antes de justificar a desnecessidade de formalização de mais uma norma que trate dos grandes problemas que possuem identidade com a pauta, importante destacar que o tema do marco legal vem sendo discutido através de duas iniciativas. Uma delas é o PL 3278/2021, de autoria do então senador Antonio Anastasia (PSD-MG), atualmente ministro do TCU, que restou arquivada ao final da legislatura passada, mas que voltou a tramitar em razão de um pedido do senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB).

Em paralelo, no ano passado, técnicos da Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana (Semob), vinculada ao Ministério das Cidades, elaboraram uma minuta de texto submetida à consulta pública, que recebeu cerca de 900 sugestões de aprimoramento. Após a consolidação, o documento ficou pronto para ser encaminhado para realização de audiência pública, estágio atual que se encontra. Após esta etapa, a versão final será encaminhada à Casa Civil da Presidência da República.

A expectativa é que os textos propostos pelo Legislativo (PL 3278) e Executivo (Semob) sejam unificados e que contenham um conjunto de normas que regule a prestação dos serviços públicos de transportes urbanos de passageiros.

No entanto, em linha com o questionamento acima, salvo melhor juízo, o arcabouço normativo sobre a temática é mais que suficiente para contribuir com o setor, devendo as condutas específicas serem tratadas em cada caso concreto nos editais e contratos públicos. O temor no alto investimento por parte do empresário não ocorre em razão da ausência de normas legais, mas sim por conta da incerteza quanto ao cumprimento delas. Na verdade, o receio ameaça não apenas o setor, mas o desenvolvimento econômico do nosso país.

É de se destacar, portanto, que dentre os principais assuntos que se destacam, estão segurança jurídica, equilíbrio econômico-financeiro, alocação de riscos e remuneração adequada. Todos esses grandes temas já estão previstos em diversas normas, consoante passamos a demonstrar a seguir.

Com relação às normas que trazem expressões que se aplicam ao setor, podemos iniciar pela Carta Magna, que prevê que o transporte é um direito social e dos trabalhadores, colocando-o na mesma importância da saúde, educação, alimentação, moradia.

Destaca ainda o caráter essencial do transporte público e a competência dos municípios para organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão esse serviço, sempre através de licitação, conferindo, portanto, previsibilidade, formalidade e regramentos claros e objetivos na relação jurídica.

No tocante à necessidade de financiamento de programas de infraestrutura em transporte, o assunto restou definido na lei que instituiu a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível.

Outra norma de bastante interesse é o Estatuto das Cidades, que enfrenta problemas que ultrapassam questões atinentes ao transporte coletivo de passageiros, passando pela abordagem de uma política objetiva acerca do pleno desenvolvimento das funções sociais locais e da propriedade urbana, bem como serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais.

Podemos citar também passagens da Lei Geral de Licitações, das Concessões e das Parcerias Público Privadas, que em seus respectivos textos trazem diretrizes que conferem segurança jurídica nas operações de serviço do transporte público de passageiros.

A lei de licitações atual aponta que as contratações públicas devem submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estarem subordinadas ao controle social, levando em consideração os custos e os benefícios decorrentes de sua implementação, com segurança jurídica para todos os envolvidos e com resultado mais vantajoso para a administração.

A mesma lei trata da preocupação de muitos operadores, qual seja, a necessidade de previsão no edital de uma matriz que aloque os riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar uma taxa compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo.

Já a lei das concessões é cristalina ao assegurar que os contratos firmados com a Administração devem conferir segurança, equilíbrio econômico-financeiro e previsibilidade aos partícipes da prestação dos serviços.

No mesmo sentido, a Lei das PPP’s trouxe mais elementos que reforçam os mesmos pontos centrais necessários a conferir segurança jurídica nas relações com o Poder Público, ao apontar cláusulas necessárias que devem constar as formas de remuneração, critérios objetivos de avaliação de desempenho do parceiro privado.

Vale citar ainda a Lei 12.587/2012, que instituiu a Política Nacional da Mobilidade Urbana e trata acerca do regime econômico e financeiro da concessão e da permissão do serviço de transporte público coletivo, com definição para o edital prever a desvinculação da tarifa pública daquela que deve remunerar o operador, de forma a assegurar a cobertura dos reais custos do serviço prestado ao usuário.

Como visto nos exemplos citados, os textos legais apontam diversos temas bastante relevantes ao setor. Poderíamos trazer outras previsões normativas interessantes sobre o tema, mas o que importa, afinal, é deixar a mensagem de dúvida acerca da necessidade de um Marco Legal, quando já temos diversas leis que conferem os regramentos necessários. O ponto em questão reforça que o problema não está na ausência de previsão legal sobre os temas relevantes e atinentes ao setor, mas sim na aplicação da lei no caso concreto, gerando a conhecida expressão da insegurança jurídica no Brasil.

Por fim, não se pode deixar de lado a importância que os instrumentos convocatórios reflitam a realidade de cada sistema, com a indicação das matrizes de risco de parte a parte e regras que possam ser adaptadas durante o período dos contratos de longo prazo, abolindo as previsões estáticas que dificultam as tomadas de decisões. Sobre esse ponto, podemos citar a necessidade de alguns sistemas em substituir a frota a diesel por novos equipamentos com energia mais limpa.

A dificuldade dos gestores esbarra nas previsões dos contratos em curso, que definem a exigência da característica dos veículos durante o curso do contrato administrativo, normalmente de longo prazo. Alguns definem padrão específico e esta previsão aflige o poder público para, por exemplo, autorizar a substituição dos carros por uma matriz elétrica, que possuem características diferentes e outros custos atrelados. Outro dificultador é a incapacidade de a tarifa pública cobrir o aumento do custo e a ausência de previsão nos editais de pagamento do operador por fontes alternativas de recursos.

Em tempos de ESG e de grande avanço da inteligência artificial, cujos temas se atualizam mais rapidamente que a norma jurídica, os editais devem prever situações que se amoldem à realidade de cada tempo, tudo isso para buscar o interesse das partes. Previsões que prestigiem o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, com divisão justa dos riscos, farão com que haja maior interesse em realizar investimentos por parte dos empresários e os gestores possam com tranquilidade, tomar decisões sem ter o receio de colocar em risco o seu CPF quando da análise das contas pelos órgãos reguladores ou mesmo por qualquer decisão judicial equivocada.

Como visto, a insegurança jurídica gera impactos negativos nas tomadas de decisões por parte dos gestores e dos transportadores e o saldo desta equação gera impacto direto na qualidade da prestação do serviço para a população usuária, constitucionalmente detentora do direito social ao transporte.

Por: Ricardo Dalle no site do JOTA